terça-feira, 14 de julho de 2009

O SÉTIMO DIA

Mãinha raspava o tacho, revirava a lenha e o cenho, bisbilhotava . Depois, chinelas arrastando, entrava em casa de mansinho, punha a toalha branca sobre a mesa. Esperava.Todo domingo. Sempre o mesmo. Mas cadê pai? Não chegasse, que importava?Desde o início da revolução, quando os homens se aquartelaram, fizeram-se em armas e pólvora, era o mesmo: pai disse,” num domingo desses eu volto, isto é
revoluta, briga de cachorro grande, logo acaba.” E assim, nestes dez anos, toda
semana ela cerzia os guardanapos e a colcha. Brancos feito farinha, feito neve
destas de cobrir os campos e o cangote, neve de dias e noites em claro, rezando
á padroeira, pedindo benção. Vezenquando chegavam notícias de pelejas e mortes,
incêndios e saques, e nenhum nome que se pareça com o dele. Mas outros, conhecidos
ou nem tanto. Então, era um desfilar de salve-rainhas por tantas almas perdidas na
bruma, no meio dos entre-canhões, das baionetas, das lanças. Mãinha se contrai toda
chega a dobrar o corpo, veste o xale, sai. Vai até o pomar e cata distraída como quem
olhasse a fita do horizonte, uma a uma , as pêras. Depois descasca, mistura o açúcar,
põe no tacho. Mistura o doce com um tanto de canela e lágrimas. Mira a panela
como se mirasse a vida: revolvendo, remexendo-se inteira. Mãinha cala. Toma
mais força na colher de pau, resvala. Até a compota sair inteira, borbulhante,
pronta. Entorna nos vidros, a massa dourada e verde. Depois guarda para abrir
na semana seguinte. Todas as semanas o mesmo ritual: as flores, as compotas,
o risoto de charque. A cadeira de palha vazia. Um chapéu no prego feito troféu.
O relógio marcando meio-dia. Uma reza. Silêncio. Todos os sete irmãos, sentados,
quietos em suas sete penas, comendo neste vagar de espera, neste vagar de modorra
quase eterna, feito um compasso que se repetisse vezes infinitas. Mãinha fita o vão
da porta. De quando em quando alguém levanta, abre a janela. Os campos contnuam
lisos, o céu continua abandonado, os mortos seguem nas carretas. Chegam, caem
sob a terra. Hoje chegou mais um. E o rancho abriu-se em vagas. O almoço esfriou.
Mãinha não saiu para o pomar. Ficou no quarto. Guardou-se dentro do negro véu.
Abriu o baú, rasgou o poncho.Tirou o chapéu do prego. Depois, como um cusco
em dia de tempestade, saiu desembestada, carabina em punho foi até o umbu
nos longes do quintal. Deu dois tiros para o alto. O terceiro trouxe para perto,
bem perto do xale, onde a mão de pai tocava carinhos. Hoje, domingo.


Lívia Petry

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