terça-feira, 14 de julho de 2009

“DORMIDOR”

Foi quando a cidade caiu em sono que eles saíram dos bueiros. Invadiram a noite e as ruas, deixando um rastro de gosma verde,patas, e um odor fétido de coisa decomposta. O primeiro a notá-los foi o “dormidor”. Envolto em trapos, uma cicatriz rompendo a perna, barba de um século e meio, o dormidor arrastava-se debaixo desta coluna de cimento e pó.
Vezenquando abria uma das pálpebras. Espiava: e via o sangue manchando a calçada, a navalha, o grito, a corrida de saltos e solas. Subia a sobrancelha enquanto o asfalto rosnava em cantos de pneus, a fumaça inundava a praça, os berros do ambulante preenchiam o ar, o cassetete encostava, mesmo toque, nas espaldas do velho andrajoso. Então roncava, ressonava. O par de botinas afastava-se com uma tosse.
Agora este cheiro: de coisa podre retorcendo, esguinchando, cobrindo de lodo verde as calçadas, os muros, os postes. Os lixeiros varriam, passavam creolina, arrancavam com furor desumano as plastacas. Dia seguinte estavam lá: nos mesmos lugares, do mesmo jeito. Cinco manhãs passaram assim. Na sexta, o chefe dos garis, buscando um culpado, tocou com um gadanho, o dormidor. Com o peso da barba que se estendia por metros e metros de chão,
o velho ergueu um cílio. Ajeitou o queixo num resmungo. Deu um cuspe.
E sonhou. No sonho, via o esgoto, via as criaturas, o rio invadindo as vilas, as tábuas boiando.Cristo descendo com uma voz grave, troante, lançando raios, queimando o asfalto. Acordou. O chefe dos garis passeava de um lado a outro. Arranjou um caixote, subiu. Em questão de minutos, discursava para um bando de macacões azuis, faces ausentes, cenho franzido debaixo do boné.
Depois, outros bonés se juntaram aos primeiros. Em meia-hora, uma multidão deles,rodeava o caixote.Os pés se mexiam, grudavam nas plastacas, desgrudavam com força do chão, a gosma verde colada. Um festival de passos, plec-plecs,impropérios, invadiu as ruas.O dormidor puxou para si os restos esfiapados do que fora cobertor um dia. Tentou ajeitar sobre as orelhas. Mas a grita da turba era maior. Sentiu de súbito, um esmagamento no peito. Era o par de botinas costumeiro. Abriu de vez os olhos. Esbugalhou-os até não mais poder. A farda afastou-se cambaleante. O velho arrotou. Sonolento, virou o pescoço. Uma pedra passou voando. Foi aterrissar dentro de uma vitrine. Era a primeira. Feito loucos, os cidadãos arrancavam o calçamento, a gosma verde cruzando o ar, em todas as direções. À noitinha, cansados, voltaram para suas casas. A cidade estava limpa.Sem calçamento, sem postes, sem muros. Tudo destruído. Só a coluna de cimento ainda resistia: fruto de um grito sem dentes, do andrajoso. Foi a única vez em que não dormiu. Arribou os cílios e as pestanas. Carregou o corpo e a barba.
O caneco e os fiapos do cobertor, deixou-os ali mesmo. Fitou a tampa de um bueiro. Mexia-se ferozmente. Hora das criaturas se espalharem. Abriu a tampa. Eles saíram: centenas, milhares, deles. Esperou. Depois desceu, arranjou um canto menos úmido e mal-cheiroso. Foi sonhar.

Lívia Petry

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