terça-feira, 11 de agosto de 2009


Plantio

Achei que podia colher versos,
como quem cata do chão
pedaços de si mesmo.
Ou quem sabe,
como o plantador,
que levanta da terra
o trigo.

Triste ilusão a minha:
descobri na tarde ensandecida,
que nada mais sei de arte alguma.
E ainda menos desta,
de colher a vida nas mãos
e depois plantá-la novamente
em sonhos.

Lívia Petry

A CARTA


As bandeirolas giravam agitadas, colorindo o ar. Outra quermesse. Outra vez o sol, a banqueta de palha, o suor inundando a camisa. Duas horas da tarde. Duas mãos postas sobre a mesa. O nanquim, os papéis em branco, o lápis, a pena. Foi ali que a sombra se escorou. Tinha metro e meio. Atarracado, bojudo. Uma testa larga, cabelo escovado pra trás. Olhos de quem busca por alma e desalma. Chegou-se mais. Pediu pela carta. – Faço, sim, escrevo o que o senhor quiser. – Apois. Diga então à Marianinha, esse o nome dela, que eu tô morreno de saudade. A mina de brita tá dando pra ganhar a vida, apesar da tosse, do pó, das ardência que a paleta agüenta. De noite o sono vem num puxão só,e aí é que eu sinto uma apertura por dentro. Uma coisa feito remuinho, querendo ela mais o menino aqui junto. Diz aí que fiz promessa pro Padim Ciço me trazê eles antes da próxima estiagem. Pregunta como vai mãinha. Se sarou da febre. Fala pra ela que eu achei um dotô que conhece cura pra tudo, que mãinha não se aperreie. O moço me disse que chá de pitangueira amaina febrão e currupio. Diz pra ela confiá em nosso sinhô Jesus Cristo, que Deus protege nóis tudo. Que eu mando um abraço do tamanho do sertão.

Limpou um resto de lágrima. O lápis ia e voltava nas linhas do papel: Marianinha, tenho saudades de ti, meu amor. O coração às vezes parece querer mais que o peito, é quando sinto tua falta. Tua e do menino. As noites são infinitas, um redemoinho me toma por dentro, e eu peço ao Padre Cícero que te traga logo pra mim. Antes da próxima seca.

Por aqui, a vida vai bem, a mina de brita rende um bom dinheiro apesar das dores, do cansaço. Ainda assim, o que mais sinto é saudade de vocês. Como vai mãinha? Sarou da febre? Encontrei um médico que aconselhou chá de pitangueira para curar a febre. Confio em Jesus Cristo, pois Deus protege a todos nós. Um abraço do tamanho do sertão.

- Quem assina?

- É Ribamar, dona.

Tomou a carta nas mãos. O papel luzia, banhado de sol. Entregou-me as duas moedas.

E foi aí que tudo se perdeu. As lonas das barracas começaram a tremer, os papéis e o nanquim voaram, um jumento foi arremessado ao chão. Não era ventania o que a secura do dia trazia. Era coisa sem tamanho. A banqueta estatelou-se, as melancias e os cajus voavam em círculos, a terra me sugou num único sopro. A areia cobriu meus olhos. Um zumbido de uivos e choros tomou conta de tudo. Quando cessou, vi á minha frente a figura de camisa xadrez, atarracada, de Ribamar. Estava boquiaberto, olhos esbugalhados. Fitava qualquer coisa de terrífico e vago. Fitava o ar. Arrastei-me até ele. Punho fechado, guardava a carta feito pepita de ouro. Os dedos amassando o papel, incansáveis, imóveis. Nesta imobilidade de susto, nesta imobilidade de folha caída ao chão. Fechei seus olhos. Mirei o endereço escrito a nanquim. Mirei as palavras com uma dor aguda, sem termo, maior que todas as vozes. Tive ganas de arrancar-lhe o papel, rasgar tudo. Mas não, não tive coragem, Marianinha. Por isso escrevo. Espero que chegue a tempo. Antes da próxima estiagem.
Lívia Petry

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Livro: O exílio das Palavras - Lívia Petry



Criação

Deus fez o universo
Das palavras,
E exortou o silêncio
Para confundir os homens.
Criou então todas as cores,
As luzes,
Os matizes.
E a escuridão
Para calar o pensamento.
Do barro surgiu o sábio,
O mequetrefe,
O esperto,
O tolo.
Desta terra
E desta água
Vieram teus olhos,
Tua boca,
Teus dedos.
E esse perfume de almíscar
Que se evola de teus ares.
Foi sob este chão
Que encontrei o Segredo.
Este, que nem a ti revelo.
Este, que rola sobre a página
Num suave delírio...
(Poema do livro: “O exílio das palavras”, Lívia Petry)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

PRIMEIRA PEDRA

Não soube ser o feixe,
o tanto de cansaço
e sangue.
A labuta incessante,
o dobrar de pulsos
e vértebras.

Não soube ser o caminho
nem o pó que pisa a pálpebra,
nem a pegada que pisa o calendário
e machuca
o grão de areia.

Não soube ser o alaúde,
nem a corda cingindo
a partida da nota,
nem teus dedos guardando
o silêncio.

Soube ser apesar de tudo,
a pedra:
lisa, monótona, negra.
Pedra de mouraria,
de muros,
de conventos.
Pedra erguendo a noite,
pedra resvalando o dia,
pedra de pisar forte e contínuo.


Pétrea melodia,
sem cantos,
sem adejos,
sem hinos.
Pétrea flor se abrindo,
luzindo de sol a pino
em estertores de granito.
Pedra de meus passos,
pedra que abre o risco
e o resvalo,
para fechar-se
no lento dobrar do sino.

Lívia Petry

TEREZINHA LAVADEIRA

Terezinha lavadeira, esfrega a roupa,
esfrega a fome.

Terezinha bordadeira, trança a vida
do rebento na barriga.

Terezinha mulher de pescador,
sobe na palafita,
quer ser mar e não pode.

Terezinha cozinheira, mistura água e farinha,
faz pirão,
faz milagre
na panela vazia.

Terezinha carpideira, reza uma ave-maria
pela alma tão mirrada,
tão nova
na sina velha
de morrer antes dos seis,
de padecer disenteria.

Lívia Petry

terça-feira, 14 de julho de 2009

“DORMIDOR”

Foi quando a cidade caiu em sono que eles saíram dos bueiros. Invadiram a noite e as ruas, deixando um rastro de gosma verde,patas, e um odor fétido de coisa decomposta. O primeiro a notá-los foi o “dormidor”. Envolto em trapos, uma cicatriz rompendo a perna, barba de um século e meio, o dormidor arrastava-se debaixo desta coluna de cimento e pó.
Vezenquando abria uma das pálpebras. Espiava: e via o sangue manchando a calçada, a navalha, o grito, a corrida de saltos e solas. Subia a sobrancelha enquanto o asfalto rosnava em cantos de pneus, a fumaça inundava a praça, os berros do ambulante preenchiam o ar, o cassetete encostava, mesmo toque, nas espaldas do velho andrajoso. Então roncava, ressonava. O par de botinas afastava-se com uma tosse.
Agora este cheiro: de coisa podre retorcendo, esguinchando, cobrindo de lodo verde as calçadas, os muros, os postes. Os lixeiros varriam, passavam creolina, arrancavam com furor desumano as plastacas. Dia seguinte estavam lá: nos mesmos lugares, do mesmo jeito. Cinco manhãs passaram assim. Na sexta, o chefe dos garis, buscando um culpado, tocou com um gadanho, o dormidor. Com o peso da barba que se estendia por metros e metros de chão,
o velho ergueu um cílio. Ajeitou o queixo num resmungo. Deu um cuspe.
E sonhou. No sonho, via o esgoto, via as criaturas, o rio invadindo as vilas, as tábuas boiando.Cristo descendo com uma voz grave, troante, lançando raios, queimando o asfalto. Acordou. O chefe dos garis passeava de um lado a outro. Arranjou um caixote, subiu. Em questão de minutos, discursava para um bando de macacões azuis, faces ausentes, cenho franzido debaixo do boné.
Depois, outros bonés se juntaram aos primeiros. Em meia-hora, uma multidão deles,rodeava o caixote.Os pés se mexiam, grudavam nas plastacas, desgrudavam com força do chão, a gosma verde colada. Um festival de passos, plec-plecs,impropérios, invadiu as ruas.O dormidor puxou para si os restos esfiapados do que fora cobertor um dia. Tentou ajeitar sobre as orelhas. Mas a grita da turba era maior. Sentiu de súbito, um esmagamento no peito. Era o par de botinas costumeiro. Abriu de vez os olhos. Esbugalhou-os até não mais poder. A farda afastou-se cambaleante. O velho arrotou. Sonolento, virou o pescoço. Uma pedra passou voando. Foi aterrissar dentro de uma vitrine. Era a primeira. Feito loucos, os cidadãos arrancavam o calçamento, a gosma verde cruzando o ar, em todas as direções. À noitinha, cansados, voltaram para suas casas. A cidade estava limpa.Sem calçamento, sem postes, sem muros. Tudo destruído. Só a coluna de cimento ainda resistia: fruto de um grito sem dentes, do andrajoso. Foi a única vez em que não dormiu. Arribou os cílios e as pestanas. Carregou o corpo e a barba.
O caneco e os fiapos do cobertor, deixou-os ali mesmo. Fitou a tampa de um bueiro. Mexia-se ferozmente. Hora das criaturas se espalharem. Abriu a tampa. Eles saíram: centenas, milhares, deles. Esperou. Depois desceu, arranjou um canto menos úmido e mal-cheiroso. Foi sonhar.

Lívia Petry

POEMA PARA FERIR O SILÊNCIO

Cansei da hora extrema,
do sangue no assoalho,
dos gemidos.
Os fios da minha ira
passaram por tuas carnes,
fizeram caminhos,
tremeram,
faiscaram.

Pude sentir outra vez o gozo supremo da dor
se entranhando,
abrindo côvados n´alma,
extinguindo a voz.

Soube em mim este olhar sem palavras,
inerte,
brilhando na meia-luz da existência.
Aprendi os nomes, a palavra exata,
suja,
chicoteando os tímpanos.

E escrevi nos teus ossos
o que a água calou,
o que a mortalha não ousou embalar
em seu sono negro,
o que se soube enterrado
num sentido amargo,
cruento,
despudorado da língua.


Lívia Petry
2.10.05

O SÉTIMO DIA

Mãinha raspava o tacho, revirava a lenha e o cenho, bisbilhotava . Depois, chinelas arrastando, entrava em casa de mansinho, punha a toalha branca sobre a mesa. Esperava.Todo domingo. Sempre o mesmo. Mas cadê pai? Não chegasse, que importava?Desde o início da revolução, quando os homens se aquartelaram, fizeram-se em armas e pólvora, era o mesmo: pai disse,” num domingo desses eu volto, isto é
revoluta, briga de cachorro grande, logo acaba.” E assim, nestes dez anos, toda
semana ela cerzia os guardanapos e a colcha. Brancos feito farinha, feito neve
destas de cobrir os campos e o cangote, neve de dias e noites em claro, rezando
á padroeira, pedindo benção. Vezenquando chegavam notícias de pelejas e mortes,
incêndios e saques, e nenhum nome que se pareça com o dele. Mas outros, conhecidos
ou nem tanto. Então, era um desfilar de salve-rainhas por tantas almas perdidas na
bruma, no meio dos entre-canhões, das baionetas, das lanças. Mãinha se contrai toda
chega a dobrar o corpo, veste o xale, sai. Vai até o pomar e cata distraída como quem
olhasse a fita do horizonte, uma a uma , as pêras. Depois descasca, mistura o açúcar,
põe no tacho. Mistura o doce com um tanto de canela e lágrimas. Mira a panela
como se mirasse a vida: revolvendo, remexendo-se inteira. Mãinha cala. Toma
mais força na colher de pau, resvala. Até a compota sair inteira, borbulhante,
pronta. Entorna nos vidros, a massa dourada e verde. Depois guarda para abrir
na semana seguinte. Todas as semanas o mesmo ritual: as flores, as compotas,
o risoto de charque. A cadeira de palha vazia. Um chapéu no prego feito troféu.
O relógio marcando meio-dia. Uma reza. Silêncio. Todos os sete irmãos, sentados,
quietos em suas sete penas, comendo neste vagar de espera, neste vagar de modorra
quase eterna, feito um compasso que se repetisse vezes infinitas. Mãinha fita o vão
da porta. De quando em quando alguém levanta, abre a janela. Os campos contnuam
lisos, o céu continua abandonado, os mortos seguem nas carretas. Chegam, caem
sob a terra. Hoje chegou mais um. E o rancho abriu-se em vagas. O almoço esfriou.
Mãinha não saiu para o pomar. Ficou no quarto. Guardou-se dentro do negro véu.
Abriu o baú, rasgou o poncho.Tirou o chapéu do prego. Depois, como um cusco
em dia de tempestade, saiu desembestada, carabina em punho foi até o umbu
nos longes do quintal. Deu dois tiros para o alto. O terceiro trouxe para perto,
bem perto do xale, onde a mão de pai tocava carinhos. Hoje, domingo.


Lívia Petry

POEMA URBANO

Andei pela cidade dispersa
Pela cidade dos rios mortos,
De um porto ás escuras
Buscando teus olhos
No néon dos bares,
Buscando teus passos
Nas pedras do mercado
No papel amassado
Jogado na calçada.

Andei entre restos de comida,
Cheiro de azeite adormecido,
Brumas de café requentado,
Apenas para sentir outra vez
O odor das quitandas
E dos botecos,
O odor das tuas entranhas,
Dos teus cabelos,
Da tua lira sem voz,
Da tua lira cega e surda,
Dos versos que jogaste ao vento
Como quem arremessa um beijo.


Lívia Petry

Maio de 2009